sábado, 24 de agosto de 2019

Acidentes de Trabalho e suas causas - parte 2

Na primeira parte deste artigo, usamos como referências principais quatro autores que se dedicaram muito ao estudo dos acidentes e suas causas: Frank Bird Jr., Trevor Kletz, Michel Llory e Mario Vidal. A principal motivação da primeira parte do artigo foi estabelecer um contraponto à ideia reducionista de buscar responsáveis ou culpados, acreditando que o erro humano é a causa raiz desses eventos indesejáveis (MATTOS, 2017). Se quiser ler a primeira parte agora, clique aqui.

Os autores escolhidos e referenciados, já vinham nos mostrando, desde a década de 70, a necessidade de análises mais amplas, reconhecendo a complexidade dos sistemas sociotécnicos e das causas dos acidentes.

No final da primeira parte do artigo, levantou-se o aspecto organizacional dos acidentes. Por isso, iniciamos esta segunda parte dando destaque aos acidentes ampliados, ou seja, aqueles cujas consequências ultrapassam os limites da empresa. Casos recentes, no Brasil, como o rompimento das barragens de rejeitos da mineração, em Mariana e Brumadinho (MG), são exemplos desse tipo de evento.

Brumadinho, MG, rompimento de barragem.
Foto 1: Washington Alves, Reuters
Os acidentes ampliados se caracterizam por afetarem, simultaneamente, uma elevada quantidade de pessoas, sejam elas trabalhadores ou moradores da vizinhança e ainda provocar danos ao ambiente e ao patrimônio. A denominação “acidentes ampliados” expressa a possibilidade de ampliação no espaço e no tempo das consequências desses acidentes (FREITAS, PORTO e MACHADO, 2000). Além disso, ao escolher a  denominação "ampliados" evita-se uma desqualificação de outros tipos de acidentes, uma vez que outras denominações, tais como "acidentes maiores" ou "acidentes graves", nos faria pressupor a existência de acidentes menores ou menos graves, mesmo em caso de mortes ou lesões incapacitantes. Dito de outra forma, a tipologia deve nos servir para melhorar a análise e não para algum tipo de classificação ou hierarquia (MATTOS, 2012).

Alguns autores, como é o caso de James Reason (1997), afirmam que existem dois tipos de acidentes: os que acontecem com pessoas e os que acontecem com as organizações. Reason reconhece que mesmo nos acidentes pessoais as consequências podem ser graves, mas sua abrangência é limitada, e explica da seguinte forma:


Os acidentes organizacionais são comparativamente raros, mas geralmente catastróficos, eventos que ocorrem no contexto de tecnologias modernas e complexas, como usinas nucleares, aviação comercial, indústria química e petroquímica, transporte marítimo e ferroviário (REASON, 1997, p. 1).

Esclarecido o aspecto da linguagem utilizada, voltemos à análise de suas ocorrências e causas.

Ao analisar esses eventos ampliados, Charles Perrow (1999) considera que as tecnologias de alto risco, em conjunto com a complexidade dos processos, deram origem a acidentes sistêmicos e inevitáveis. Segundo ele, os sistemas de produção tornaram-se tão complexos que é impossível antecipar todas as interações de falhas inevitáveis que levam a efeitos catastróficos. Isso ocorre pelo fato de os sistemas lidarem com substâncias mais letais ou porque a demanda é para funcionarem em ambientes mais hostis, com mais velocidade e volume. É uma visão um tanto quanto pessimista, pois considera que caminhamos inexoravelmente para os acidentes, na medida em que nossos sistemas se tornam mais complexos. E o que fazer, se prevalecer esse tipo de análise?

Ivette Veyret (2007) traz uma visão menos pessimista do que Perrow, embora reconheça que a eliminação do risco é uma concepção ultrapassada, pois não existe a segurança total. Como alternativa ela estabelece que o gerenciamento dos riscos deve estar melhor integrado às práticas de gestão. Ao tratar especificamente dos riscos industriais, Veyret  discorre que o método de análise desses riscos passa pela necessária identificação de todos os cenários de disfuncionalidades, o que depende do conhecimento de fenômenos acidentais que já ocorreram em um determinado processo industrial. Ela constata, entretanto, que com a velocidade do desenvolvimento tecnológico dentro dos processos industriais, nem sempre é possível obter informações de eventos acidentais, quando os processos são novos e relativamente desconhecidos, senão na sua essência, mas na sua característica de operação, seja por tamanho, quantidade ou velocidade. Ela indica para essas situações, isto é, quando o conhecimento científico não permite eliminar as dúvidas, a aplicação do princípio da precaução. O conceito embutido nesse princípio, é que não se utiliza a incerteza científica como desculpa para a diminuição da prevenção em função do desconhecimento do perigo.

Robert Melchers (2000) ao mencionar os riscos de novas tecnologias, reconhece que a sua gestão é mais complexa, pois eles podem parecer menores do que realmente são. Isso ocorre, segundo ele, porque a experiência relacionada à operação é pequena e por não ter havido tempo suficiente para que os problemas operacionais tenham se tornado evidentes. Nesses casos, as simulações, as extrapolações, os cálculos de probabilidades e a análise de abrangência de sistemas ou processos de características similares, tornam-se fundamentais.

Explosão e incêndio em refinaria da Exxon, na Califórnia, 2015
Foto 2: Corpo de Bombeiros de Los Angeles
E quando o acidente acontece, em um contexto de tão alta complexidade, como encontrar as causas? Isso é realmente possível? Me arvoro a dizer que nem todas as causas serão identificadas. As intrincadas relações entre sistemas, histórico, projetos, pessoas, podem tornar impossível essa tarefa em sua totalidade. Mas isso não deve nos desmotivar, ao contrário, é um estímulo ao estudo. Quanto mais causas forem identificadas e bloqueadas, menor será a probabilidade de uma nova ocorrência.

Michell Llory, em entrevista para os professores Rodolfo Vilela, Ildeberto Muniz e Flora Vezza, publicada na revista Saúde e Sociedade, em 2013, ensina que processos de decisão muito distantes e anteriores à operação direta é que têm um papel decisivo na ocorrência dos acidentes. E que os riscos não estão ligados às ações individuais das pessoas. Por isso, para essa tarefa de encontrar as causas, ele recomenda um esforço permanente de curiosidade, de investigação interdisciplinar, de procurar em muitos lugares diferentes, em todas as áreas do conhecimento:
Neste sentido, acredito que é particularmente útil o uso do paradigma indiciário para fazer uma investigação que construa o raciocínio a partir de indícios existentes na situação. Trata-se de um método usado por vários profissionais para fazer um diagnóstico, sejam eles médicos, historiadores, policiais ou psicanalistas. Esta abordagem é essencialmente clínica, portanto muito diferente dos métodos do engenheiro: este aplica métodos muito estruturados, frequentemente utilizados através de suportes informatizados, que consistem muitas vezes em assinalar campos pré-estabelecidos. (Llory, 2012)

Se por um lado a crítica de Llory possa passar uma mensagem de descrédito quanto às metodologias utilizadas pela indústria em geral, por outro pode-se  compreendê-la como um alerta da necessidade de ampliar o horizonte da análise e investigação.

Afinal, esse conhecimento das causas, é o que vai nos servir para evitar a recorrência ou a repetição do mesmo evento, para evitar a ocorrência de eventos semelhantes ou para a proteção contra as consequências. O objetivo de uma investigação de um acidente é, obviamente, entender por que o acidente aconteceu e trabalhar para que não se repita.

Sobre as diferentes metodologias utilizadas para encontrar as causas de um acidente, um relatório elaborado pelos pesquisadores Erick Hollnagel e Josephine Speziali, em 2008, identificou vinte e um métodos e selecionou sete deles para análise e comparação. A pesquisa foi encomendada pela SKI - Swedish Nuclear Power Inspectorate, que na ocasião era o organismo oficial sueco de proteção contra a radiação. Não vou entrar aqui no detalhamento desse excelente trabalho, uma vez que a proposta do nosso artigo é enfatizar a importância e a complexidade de identificação das causas e a partir delas da construção das medidas de controle. Mas destaco este trecho da conclusão da pesquisa:
A conclusão é que nenhum método específico é o melhor no sentido de que pode ser usado para todas as condições. Embora possa ser conveniente, ou mesmo necessário, para um organização adotar um método específico como padrão, isso deve sempre ser feito conscientemente e com uma vontade de reconsiderar a escolha quando as condições assim o exigirem. Em cinco ou dez anos, devemos esperar que os métodos desenvolvidos hoje tenham ficado parcialmente obsoletos, não porque os métodos mudam, mas por que muda a natureza dos sistemas sociotécnicos e, portanto, a natureza dos acidentes deles decorrentes. (Hollnagel e Speziali, 2008)

Embora se possa constatar a complexidade desse tema, ainda é comum a busca da simplificação da análise e por consequência, da identificação das causas. É uma forma de se livrar mais rapidamente do problema, responder a uma opinião pública que muitas vezes se mostra punitivista, porém não traz a solução mais eficaz, ou seja, não gera aprendizado, não aprofunda o conhecimento e não propicia o amadurecimento das análises e investigações.

Raoni Rocha e Francisco Lima, ao realizarem, em 2018, um estudo sobre o acidente com o vôo 447 da Air France, destacaram que o erro humano é apontado como o último elo da cadeia de eventos que levaram ao acidente e, portanto, como sua causa imediata. Mas eles propuseram uma explicação alternativa, que não se limitou a identificar erros cometidos pela tripulação, mas uma explicação sobre os próprios erros:
Na análise cognitiva dos acidentes, fundamentada nos conceitos de ação e cognição situadas, o erro humano não explica o acidente, mesmo quando ele se apresenta como sua causa imediata, ou o último elo em uma cadeia de eventos. Que este erro tenha acontecido é que exige explicação. (Rocha e Lima, 2018)
Mesmo existindo uma literatura farta, com base em pesquisas de campo e análise de acidentes, ainda há quem culpe a vítima. Recentemente, por exemplo, o CEO de uma grande empresa afirmou em uma entrevista, a respeito da morte de um empregado em um acidente de trabalho, que a vítima errou e pagou com a própria vida. Mas que os supervisores também erraram e deveriam ser demitidos.

Esse depoimento ilustra como a simplificação da análise é uma escolha fácil que pode agradar a muitos ouvidos, uma vez que é uma resposta rápida, praticamente imediata, após um acidente. Mas revela desconhecimento das causas mais importantes, as causas latentes, que possibilitam o desencadear de eventos iniciadores de um processo que pode culminar com um acidente.

Porém, uma revisão da literatura especializada, ainda que pequena como esta, apresentada nas duas partes deste artigo, evidencia que a complexidade desse assunto exige que as análises dos acidentes sejam feitas de forma abrangente, buscando identificar um conjunto de causas prováveis, através de métodos que reconheçam a sua própria insuficiência.

Nessa segunda parte, com foco nos acidentes ampliados, procuramos destacar que as organizações, com suas escolhas e direcionamentos, podem desempenhar um papel fundamental e indutor tanto para a ocorrência desses eventos indesejados, quanto para a sua prevenção.

O autor: Ricardo Pereira de Mattos é engenheiro eletricista (UFRJ), com pós-graduação em engenharia de segurança do trabalho (PUC-Rio) e Mestrado em Sistemas de Gestão de Segurança e Saúde no Trabalho (UFF).

Referências:

MATTOS, R.P. Acidentes de trabalho e suas causas - parte 1. Endereço da Prevenção. Blog de informação em Segurança, Meio Ambiente e Saúde, 2017. Disponível em https://enderecodaprevencao.blogspot.com/2017/06/acidentes-de-trabalho-e-suas-causas.html

FREITAS, C. M.; SOUZA, M. F.; MACHADO, J. M. H. (Orgs.). Acidentes industriais ampliados: desafios e perspectivas para o controle e a prevenção. Rio de Janeiro: FIOCRUZ, 2000.

MATTOS, R.P. Aspectos de Segurança de Trabalho na formação de engenheiros. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade Federal Fluminense, 2012. Disponível em https://app.uff.br/riuff/handle/1/859

REASON, J. Managing the risks of organizational accidents. Aldershot: Ashgate, 1997.

PERROW, C. Normal Accidents – Living with high-risk technology. New Jersey:
Princeton University Press, 1999.

VEYRET, Y. (Org.) Os riscos – o homem como agressor e vítima do meio ambiente. Tradução Dilson Ferreira da Cruz. São Paulo: Contexto, 2007.

MELCHERS, R.E. On the ALARP approach to risk management. Reliability Engineering and System Safety, 71, p. 201-208, 2001.

VILELA, Rodolfo Andrade de Gouveia; ALMEIDA, Ildeberto Muniz; VEZZA, Flora Maria Gomide. A investigação de acidentes industriais: uma entrevista com Michel Lllory. Saúde e Sociedade. São Paulo , v. 22, n. 1, p. 262-269, Março, 2013.

HOLLNAGEL, E.; SPEZIALI, J. Study on Developments in Accident Investigation Methods: A Survey of the “State-of-the-Art”. SKI Report 2008:50.  StockholmSwedish Nuclear Power Inspectorate, 2008.

ROCHA, R. e LIMA, F. Erros humanos em situações de urgência: análise cognitiva do comportamento dos pilotos na catástrofe do vôo Air France 447. Gestão e Produção [online]. 2018, vol.25, n.3, pp.568-582.

Foto 1: Brumadinho, MG, rompimento de barragem. Washington Alves, Reuters. Disponível em http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019-08/cvm-abre-inquerito-sobre-rompimento-da-barragem-em-brumadinho


Foto 2: Explosão e incêndio em refinaria da Exxon, na Califórnia. Disponível em https://www.ogj.com/general-interest/article/17290045/csb-issues-final-report-on-2015-fcc-unit-blast-at-exxonmobil-refinery

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